terça-feira, dezembro 3, 2024

Da brincadeira ao suicídio, bullying é igual e só troca de ‘uniforme’

Da brincadeira ao suicídio, bullying é igual e só troca de ‘uniforme’

É só chegar em uma rodinha de jovens e perguntar: ‘Você conhece alguém que sofre bullying na escola?’ A pergunta é suficiente para gerar uma troca de olhares que termina com uma resposta afirmativa. O Lado B conversou com estudantes do Ensino Médio de escolas estaduais e particulares para saber como essa forma de violência repercute nos corredores e salas de aula.

Além de falar com os jovens, a reportagem também procurou uma psicóloga para tratar sobre o assunto. Mariana Moura da Silva é especialista em psicanálise e explica como os pais podem descobrir se a criança e a adolescente estão passando por esse tipo de intimidação sistemática no colégio.

É tarde de sexta-feira no Bairro Chácara Cachoeira e um grupo de garotos saem juntos após o último sinal do dia tocar. Em frente à escola, eles passam alguns minutos conversando e, pouco a pouco, alguns vão embora em carros. Uniformizados, os quatro que ficaram seguem a pé pela calçada em direção às respectivas casas.

Estudantes de Ensino Médio falam como funciona o bullyng no colégio. (Foto: Alex Machado)

É ali que eles conversam na calçada com a reportagem por uns minutos. A princípio vem a timidez e o empurra-empurra de ‘diz você aí’. Dos quatro, João* é o primeiro a falar. “Se rola bullying? Acontece, mas depende”, afirma. O ‘depende’, segundo ele, é porque são feitas brincadeiras, mas nada mais ‘pesado’ que isso. “Às vezes a pessoa não gosta da brincadeira”, fala.

O grupo de estudantes são todos do Ensino Médio, mas no colégio que frequentam tem turmas de ensino fundamental também. Na visão deles, o bullying ocorre com mais frequência entre os adolescentes. “É mais no ensino médio, só entre os meninos”, revela Jonathan*.

Em nenhum momento os garotos aprofundam as situações que presenciam. Até onde expõem, eles garantem nunca terem visto nada sério além de brincadeiras ‘bestas’ de ‘zoarem’ as turmas. “Aqui é mais tranquilo e os coordenadores também cobram”, diz Renan*.

Dos quatro, só João* confessa que já lidou com uma situação de bullying onde foi apelidado de ‘panguão’. O adjetivo, segundo a roda de meninos, significa ‘lerdo’.

Do outro lado da cidade, cinco alunos conversam em roda na praça próximo a um ponto de ônibus. Uniformizados com o verde característico das escolas estaduais, os quatro meninos e a única menina topam compartilhar relatos sobre bullying. A maioria tem 16 anos e cursa o segundo ano do Ensino Médio e todos já vivenciaram o bullying.

Só que para eles, a palavra não vem acompanhada por um alívio de ‘brincadeira’ ou ‘zoação’. O primeiro a se manifestar sobre o assunto é Guilherme*. “Acontece às vezes e mais com pessoas que vieram de outros países. Às vezes a rapaziada zoa pelo jeito que eles falam, é bem chato”, afirma.

Alguns estão no primeiro ano do Ensino Médio, enquanto outros estão no segundo ano. Independente dessa diferença, todos respondem que já sofreram bullying pelo menos uma vez na vida. “Todo mundo já sofreu bullying isso é normal. O pessoal já falou do meu corpo porque sou gordinho”, declara Guilherme*. –

Outro que ouviu comentários pejorativos por conta da aparência física é Felipe. “Já sofri por causa da aparência. Eu era muito pequeno e magrinho”, expõe. Um outro menino, Higor, veio de outro país e durante um período virou chacota entre os colegas devido ao sotaque em espanhol. “No começo foi difícil por não falar português, mas já passou”, pontua.

Para eles, o bullying é uma questão que ‘passou’. Ainda assim, a turma revela que vê a situação persistir para outros alunos. “Já vi racismo, no recreio, de os meninos estarem jogando e um falar: ‘Você é sem pai, seu preto”, expõe Eduardo*.

Consequências do bullying – Para mostrar o outro lado desse cenário, a psicóloga Mariana Moura compartilha a sua experiência sobre o tema. Conforme a profissional esse tipo de violência traz imensos prejuízos às crianças e adolescentes, pois a maioria dos casos acontece em escolas, que deveriam ser ambientes ‘seguros e acolhedores’.

As consequências, segundo a psicóloga, são manifestadas de duas formas diferentes. A primeira é a curto prazo onde a vítima pode  apresentar insônia, reações psicossomáticas, como dor de cabeça, dor de barriga, alergias, além de pensamentos depreciativos e dificuldades na interação com os demais colegas.

A longo prazo, ela cita que o bullying pode inclusive levar à morte. “A vítima pode apresentar dificuldades em se relacionar com outras pessoas e as agressões que experienciou podem influenciar no surgimento de quadros depressivos e, possivelmente, em episódios mais graves, podendo até levar ao suicídio”, explica. –

Por medo ou vergonha, as crianças e adolescentes tendem a esconder que estão sendo vítimas de outros alunos na escola. Outro motivo para os filhos esconderem a situação dos responsáveis, conforme a psicóloga, é causado pela intimidação.

“Muitas vezes sofrem algum tipo de pressão psicológica a fim de evitar que os adultos saibam de seus atos. No entanto, há vários indicadores que  podem evidenciar que uma criança está sofrendo bullying na escola”, alerta.

Os principais indicadores são: Desinteresse pela escola e pelos estudos, recusa a ir à escola; Machucados e hematomas constantes; Isolamento dos amigos; Material escolar e uniforme deteriorados; Tristeza e choro sem motivo aparente; Baixa autoestima; Irritabilidade e agressividade; Dores de cabeça ou de barriga constantes; Transtornos alimentares e Apatia constante.

Mas se a criança ou o adolescente não quer falar como abordar o assunto? Mariana esclarece como os pais podem dialogar com os filhos sobre o bullying evitando um ‘sermão’ ou um ‘interrogatório’. Os primeiros passos, conforme a psicóloga, é conquistar a confiança do filho (a),  estar aberto a ouvir e reservar um tempo para ter essa conversa.

“Inicie a conversa disposto a escutar, evite juízos de valor e deixe que seu filho ou filha fale, mesmo se ele ou ela for o(a) agressor(a). Se decidiu falar com você, é porque sua situação o(a) preocupa e está buscando compreensão e ajuda”, destaca.

Outro ponto importante é jamais aconselhar a criança a ignorar a agressão ou intimidação. “Se a criança ou adolescente fosse capaz de simplesmente ignorar, não haveria dito nada a respeito. Muitas vezes, ignorar as ofensas ou intimidações permite que se tornem mais graves”, alerta.

Outro lado da moeda – Se alguém sofre bullying é porque existe um outro alguém que pratica esse modelo de violência sistemática. A psicanalista também explica esse outro lado e os possíveis motivos que podem levar um menor a praticar bullying.

No consultório onde atende, Mariana tem mais pacientes de 6 a 13 anos com sintomas clássicos de bullying enquanto vítimas. “É um detalhe importante a se atentar, já que na maioria das vezes as crianças e adolescentes que praticam a agressão não chegam ao consultório com tanta frequência, consequência também da ausência dos pais na percepção desse filho”, relata.

Essa falta de percepção somada a outras questões, na maioria das vezes, impactam diretamente no comportamento da criança que se torna um agressor. A psicóloga cita outros fatores que contribuem para isso.

“As adversidades familiares se apresentam como um grande fator desencadeante para o desenvolvimento da agressividade em crianças e adolescentes, relacionamento afetivo fraco ou inexistente com os pais, excesso de permissibilidade e a prática de maus tratos físicos e explosões emocionais dos pais”, esclarece.

Hiperatividade, impulsividade, distúrbios comportamentais, dificuldades de atenção, baixa inteligência e desempenho escolar deficiente são outro fatores individuais que podem fazer a criança e o jovem praticar bullying

Enquete – Na enquete de domingo (21), o Campo Grande News trouxe a seguinte pergunta: ‘Você já sofreu bullying?’. 74% dos leitores responderam que sim, enquanto 26% responderam que não.

  • Os nomes na reportagem foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados

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