terça-feira, dezembro 3, 2024

Bullying na escola: “grande parte desses indivíduos são indivíduos autistas”

Durante o Março Laranja, momento em que a conscientização contra o bullying nas escolas já ganha novo enfoque, prestar atenção às crianças com TEA (Transtorno do Espectro Autista) é ainda mais necessário.Segundo o pesquisador de Autismo e Inclusão Lucelmo Lacerda, a dificuldade de estabelecer conexões e interações sociais, além do preconceito que muitos ainda têm com o autismo, cria situações de extrema vulnerabilidade para pessoas no espectro.

Por isso, ele alerta para a necessidade de cuidados redobrados na criação e na educação de crianças autistas.Lacerda é doutor em Educação, autista e pai de autista. Em entrevista para a Gazeta, ele esclareceu qual o papel de pais, professores e colegas na identificação e na prevenção do bullying, e como lidar com essas situações.

Confira:

Como o mês de março, dedicado à conscientização contra o bullying nas escolas, destaca a importância de prestar atenção às crianças com TEA (Transtorno do Espectro Autista)?
A literatura científica especializada classifica os estudantes com autismo como “vítimas perfeitas” do bullying, por vários motivos.Porque esses indivíduos têm dificuldades em termos de habilidades sociais, porque eles não têm sinais físicos que indicam essa condição, que é considerada uma deficiência. Então, quando você fala em bullying na escola, grande parte desses indivíduos são indivíduos autistas. Então há um interesse especial neste público quando o assunto é bullying.Em seu livro, você menciona a extrema vulnerabilidade das pessoas no espectro autista devido às dificuldades de conexões sociais. Quais são os principais desafios sociais enfrentados por elas?

As características do autismo implicam que haja um prejuízo muito expressivo na reciprocidade socioemocional. E na comunicação não verbal. Então, quando a gente fala, quando a gente conversa, quando a gente interage, não é só o que é dito que importa, mas como é dito dos vários sinais sociais que são emitidos ali. Como pessoas autistas podem ter dificuldades com esses sinais, isso pode ser muito complicado, porque uma fala, por exemplo, que é irônica, que é sarcástica, ela pode ser entendida literalmente. Alguns estudantes autistas têm dificuldade inclusive com a própria linguagem, então isso pode amplificar todos esses prejuízos. E aí, quando você não entende essa intencionalidade, você fica mais submetido às situações em que haja malícia nessa relação, e aí vira um alvo muito grande, principalmente na adolescência, de brincadeiras jocosas e de agressões.

Qual é o papel crucial de pais, professores e colegas na identificação e prevenção do bullying contra crianças autistas?
Se a gente não contar com o coletivo, a gente não vai conseguir superar o bullying, né? A gente precisa que quando um bullying comece a perpetrar esse tipo de violência, as outras pessoas imediatamente, os outros estudantes imediatamente se recusem a participar dele. É quando esses outros alunos se dispõem a participar dele, é que ele se amplifica. A gente precisa que eles recusem, mais do que isso, a gente precisa que eles denunciem. A gente precisa também que os professores que vejam, que os pais que vejam denunciem, que os pais dos outros alunos trabalhem com seus filhos em relação a isso. A gente precisa, claro, também de uma política da escola de recepção dessas denúncias, um canal claro. Todo estudante deve saber quando há bullying qual é o canal apropriado para ele denunciar. Os professores também. E saber identificar. Então, a escola tem que fazer um trabalho muito sério para que todos esses agentes saibam identificar o que é uma situação de bullying para poder fazer essa denúncia.

Sua crítica à política de Inclusão Total nas escolas brasileiras destaca a precariedade do ensino regular. Como essa abordagem afeta crianças e adolescentes neurodivergentes?
Essa questão afeta todos, especialmente aqueles com neurodivergentes. Por quê? Porque os estudantes com desenvolvimento típico, quando a escola falha, eles têm mais recursos para correr atrás dessas lacunas que a escola não conseguiu cumprir porque não está trabalhando baseado na melhor evidência científica disponível. Estudantes com deficiência, em grande parte das vezes, não têm esses mesmos recursos. Eles precisam muito mais do apoio da escola. A probabilidade de, por exemplo, eles não serem alfabetizados, serem vítimas de bullying, não conseguirem desenvolver uma série de outros conhecimentos, de habilidades importantes para sua vida, é muito grande. E, se você considerar que a escola é o principal serviço público oferecido para essas crianças, então, o nosso desafio é muito grande.

Na prática, como a lacuna de aprendizagem nas escolas brasileiras, especialmente nas públicas, prejudica o desenvolvimento de crianças com necessidades especiais?
Bom, temos que entender que a escola é o único serviço muito precoce a que eles têm acesso, porque é muito difícil ter isso na saúde. É o único serviço intensivo, de grande calibre de horário, porque as intervenções para esse público só funcionam em grande calibre de horário. Na saúde, normalmente, você vai conseguir 15 minutos, uma vez por semana, quando muito. E é o único serviço que, de fato, cria condições também de desenvolvimento de habilidades sociais, ou seja, e que é realmente universalizado. Tem no Brasil inteiro. Todo mundo tem acesso. Ou seja, ele é o serviço por excelência mais fundamental na vida dessas pessoas. Então, todos os aprendizados de habilidades sociais, de desenvolvimento acadêmico e de desenvolvimento propriamente dito, que esse indivíduo poderia ter, ou ele vai ter na escola, ele não vai ter. É muito difícil ele ter em outro contexto. Então, o que a escola produz é ausência. É uma lacuna em todos esses aspectos.

Pode explicar a diferença entre Inclusão Total e Educação Inclusiva? E como essas abordagens se refletem na realidade escolar?
Do ponto de vista da inclusão total, o estudante precisa estar matriculado na escola, então o professor vai dar uma aula padronizada, mas uma aula que sirva para todos. Mas uma aula padrão. Ele não pode olhar para as especificidades individuais dos estudantes. Então, ele precisa fazer uma aula que seja diversa o suficiente. Acontece que nós não temos na literatura científica, em nenhum lugar do mundo, em termos de política pública, nenhuma descrição, nenhum experimento, nenhum estudo científico que tenha uma aula única, padronizada, que sirva para todas as pessoas, de toda a diversidade da humanidade. Embora a ideia seja boa, ela não existe. Enquanto a educação inclusiva pressupõe que, quando umestudante com deficiência está matriculado na minha sala, eu tenho que olhar para a sua especificidade, para a sua individualidade. E aí, eu trabalhar com essa individualidade, faço um plano educacional individualizado para ele. E aí eu vou dar o apoio que ele precisar. Pode ser pouco, pode ser médio, pode ser muito. E no caso do Brasil, apesar de a legislação acolher uma versão de educação inclusiva, na prática escolar, em grande parte dos documentos, a versão é da inclusão total. Então, é isso que está hegemônico. A ideia de que você simplesmente matricula o indivíduo, coloca na escola. E aí você tem um respeito pela diversidade e as coisas vão acontecer. E aí isso produz, claro, uma lacuna gigantesca.

Você destaca a importância das Práticas Baseadas em Evidências. Como essa abordagem científica pode melhorar a educação para crianças com deficiências?
Vejam, nós temos duas possibilidades. Ou nós vamos trabalhar com coisas que já foram testadas e aprovadas, ou nós vamos trabalhar com aquilo que a gente ia imaginar. A gente cria, a gente inventa e a gente vai implementar. Então é claro que se eu estou falando principalmente de pessoas com deficiência, pessoas em condição de vulnerabilidade, eu não tenho o direito de errar. Eu não tenho o direito de fazê-la de cobaia e de ficar testando. Entende? Então ele tem o direito de exigir que eu estude o suficiente para chegar lá fazendo aquilo que tiver a melhor evidência. É como se você vai num médico e você imagina que o médico vai inventar. Eu tenho 10 cirurgias aqui que eu gostaria de testar, então eu vou testar todas em você. É claro que não faz sentido, eu tenho que pegar a melhor cirurgia que existe para aquele caso e usá-la. Porque é direito desse indivíduo ter acesso ao melhor e na educação da mesma forma.

Diante dos desafios apresentados, quais são as soluções que você propõe para garantir um ensino especializado e eficaz para cada aluno?
Acho que nós temos duas questões. A primeira é garantir uma formação que seja baseada nessas perspectivas científicas. Então isso precisa mudar. Nós podemos mais ter uma formação que é baseada numa autoajuda que diz que se você respeitar a diferença, está tudo resolvido. Isso não é verdade, isso é falso e isso não está levando a gente a lugar nenhum. Então a gente precisa mudar e ao invés de a gente ter essas palestras de autoajuda no nosso circuito como professores com formação continuada, formação de serviço, que isso seja treinamento para implementar práticas com evidência. A segunda coisa é que isto não resolverá todas as questões, considerando que você tem um problema estrutural. Você tem um problema de pessoas, você tem um problema de estrutura física, você tem um problema de salas superlotadas. Então tudo isso são questões importantes que precisam ser endereçadas para a gente conseguir implementar adequadamente essas práticas. Elas não podem ser implementadas em um ambiente hostil.

Em “Crítica à Pseudociência em Educação Especial”, você analisa diversas correntes na Educação Especial. Pode compartilhar algumas reflexões principais destacadas em sua obra?
Nessa obra o que eu faço é olhar para os documentos da educação especial no brasil e me perguntar esses documentos essas coisas que estão em vigor aqui no brasil elas seguem qual dessas linhas educação inclusiva inclusão total né e aí eles são partidários da inclusão total e mais do que isso quando a gente olha para o mundo o que que você vê o que você vê olhando para Europa né aí eu tenho um destaque no texto em relação a Finlândia como é que que acontece quando você olha para os estados unidos então é uma unanimidade que todos os lugares desenvolvidos trabalham com a perspectiva da educação inclusiva né então quando você compara o que se faz nos países que têm uma educação mais adequada e no brasil é chocante é absolutamente chocante né e quando. E percebe que no Brasil tudo aquilo que você faz, que se faz, já tem uma série de estudos científicos que já demonstraram que é totalmente ineficaz e ineficiente, é também uma questão chocante. Como é que você faz um monte de experimento? Você demonstra que o negócio não serve, não funciona, e aí a gente tem no Brasil país que tem na sua constituição um compromisso tão expressivo com os direitos humanos, você tem esse tipo de política, principalmente para esse público mais vulnerável, é realmente chocante.

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