Além da infância: adultos autistas enfrentam desafios sociais e buscam compreensão
Pedagoga e professora na Escola Municipal Francisca Pessoa Mendes, em Paranaguá, Daniele recebeu um diagnóstico tardio de autismo, aos 38 anos, em 2023. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral
A campanha do Abril Azul busca sensibilizar e mobilizar a comunidade sobre as questões relativas ao autismo, com o objetivo de construir uma sociedade mais informada, tolerante e inclusiva. Neste contexto, o JB Litoral apresenta uma reportagem especial sobre os desafios enfrentados por adultos no espectro autista. Frequentemente mascarado ou mal compreendido em adultos, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) abrange uma ampla gama de intensidades e pode dificultar a integração social dos afetados.
Embora o autismo geralmente seja identificado na infância, diagnósticos em adultos estão se tornando cada vez mais comuns. Contudo, o TEA possui diversos graus de intensidade e pode ser difícil de reconhecer sem a atenção adequada. Muitas pessoas no espectro passam anos, ou até décadas, enfrentando desafios desconhecidos, sentindo-se deslocadas e “diferentes” sem entender o motivo.
O neurologista Dr. Matheus Trilico, especialista no diagnóstico e tratamento do Transtorno do Espectro Autista (TEA) em adultos, compartilha, em seu site na internet, informações sobre a condição. “O Transtorno do Espectro Autista ocorre em todas as idades, grupos raciais, étnicos e socioeconômicos. O autismo é geralmente caracterizado por dificuldades sociais, de comunicação e por comportamentos repetitivos ou estereotipados, embora os sinais do transtorno possam se apresentar de maneiras muito variadas entre as pessoas”, explica.
Autismo em adultos
Dr. Trilico destaca que os principais desafios enfrentados por indivíduos com TEA incluem o desenvolvimento típico da linguagem, a interação social, os processos de comunicação e o comportamento social. Além disso, ele observa que adultos autistas que não foram diagnosticados na infância, mas que vivem de maneira bastante integrada à sociedade, trabalhando e estudando em ambientes regulares e que iniciaram famílias, geralmente apresentam sintomas de menor gravidade dentro do espectro.
“Os sinais de autismo leve em adultos tendem a ser mais pronunciados na interação e comunicação social do que no próprio desenvolvimento cognitivo, pois não há deficiência intelectual ou mental. Por esse motivo, pode ser muito difícil detectar os sintomas de autismo em adultos, mas alguns sinais nos dão pistas importantes”, esclarece.
“Sempre senti que havia algo diferente em mim”
O autismo é uma condição permanente, e entender como ele afeta cada fase da vida é essencial para assegurar a qualidade de vida e a inclusão social de pessoas autistas. “Sempre senti que havia algo diferente em mim. Durante a infância, eu conseguia falar, mas optava pelo silêncio. Sabia andar, mas relutava em colocar os pés no chão. Na escola, não fazia amigos, e essa sensação de isolamento persiste até hoje“, relata Daniele Malquevicz, de 39 anos, casada e mãe de três filhos.
Pedagoga e professora na Escola Municipal Francisca Pessoa Mendes, em Paranaguá, Daniele recebeu um diagnóstico tardio de autismo, aos 38 anos, em 2023. A descoberta veio após ela notar um aluno que se comportava de maneira notavelmente semelhante a ela na infância.
“Era como se estivesse vendo uma versão mais jovem de mim mesma. Ele agia como eu agia, e isso despertou memórias que eu tinha reprimido. Eu podia prever o que ele estava passando. Ao mesmo tempo, ele destoava de todo o resto da turma“, conta ela. Isso levou a professora a encaminhar o aluno para uma avaliação especializada e, simultaneamente, a questionar sua própria história.
Motivada por essa identificação, Daniele procurou o auxílio de psicólogos e de um neurologista especializado em diagnóstico de autismo em adultos. Após uma consulta detalhada, o especialista confirmou: ela estava no espectro autista. Esse diagnóstico abriu um novo caminho de autoconhecimento e entendimento sobre sua trajetória de vida.
“(Receber o diagnóstico) Foi, de certa forma, um alívio. Trocar tantos rótulos — de fresca, chata, louca, burra — por um diagnóstico claro foi libertador”, diz Daniele. Foto: Rafael Pinheiro/JB Litoral
Diagnóstico traz alívio
De acordo com a psicóloga Natalie Brito Araripe, especialista em análise comportamental e com mais de uma década de experiência em terapia ABA para autismo, a maioria das pessoas que recebem um diagnóstico tardio relata sentir um grande alívio ao obter a confirmação. “Pois, a partir disso, conseguem entender vários comportamentos e sofrimentos que perduraram por anos. O diagnóstico vem como uma ferramenta de alívio e mostra o peso que é não ter acesso a alguns direitos e terapias”, afirma ao JB Litoral.
Mesmo antes do diagnóstico, Daniele já notava desafios em sua vida diária, como dificuldades em socializar e uma certa rigidez comportamental. “Percebi que algo não estava certo em 2022, logo após a morte do meu pai“, ela compartilha. “Foi no meu segundo dia de trabalho aqui na Escola Municipal Francisca Pessoa Mendes, e minha irmã me ligou para dar a notícia. Ele morava em Salvador. Não fui ao velório nem ao enterro porque senti que precisava trabalhar. Essa rigidez é problemática, mas eu simplesmente não consegui me permitir faltar ao trabalho para ir ao funeral“, lamenta.
Quando finalmente recebeu o diagnóstico, Daniele experimentou um misto de temor e alívio. “Foi, de certa forma, um alívio. Trocar tantos rótulos — de fresca, chata, louca, burra — por um diagnóstico claro foi libertador. É complicado lidar com essas etiquetas. Saber que estou no espectro autista me trouxe alívio, porque agora sei quem sou e posso buscar o apoio necessário, como tratamentos e terapias“, reflete.
Sintomas do autismo em adultos
Sintomas como dificuldades em reconhecer e expressar emoções, desafios nas interações sociais, alta sensibilidade sensorial, rigidez mental e inflexibilidade cognitiva são frequentemente observados em indivíduos com autismo. Adultos autistas muitas vezes encontram barreiras ao socializar, especialmente ao interpretar sinais sociais sutis. Eles podem apresentar déficits tanto na comunicação verbal quanto na não-verbal, enfrentando obstáculos ao tentar compreender mensagens implícitas.
Segundo o Dr. Matheus Trilico, muitos têm dificuldade em perceber e entender expressões faciais e sinais não verbais. Interpretar metáforas, ironias e piadas com mensagens subliminares pode ser particularmente desafiador. Alguns podem parecer indiferentes ou mostrar pouca empatia, tendo dificuldades para reconhecer emoções em outros, como tristeza, raiva, tédio ou mesmo alegria, a menos que sejam expressas de forma muito evidente.
Outras dificuldades incluem a relutância ou desconforto em demonstrar ou receber afeto, onde a proximidade física, toques ou contato podem ser percebidos como extremamente desagradáveis. Lidar com os próprios sentimentos ou os sentimentos alheios também pode ser um desafio. “Geralmente, esses indivíduos preferem uma linguagem direta e formal, o que às vezes pode ser interpretado como uma sinceridade excessiva. Eles também tendem a trabalhar melhor sozinhos do que em equipe, enfrentam dificuldades em se adaptar a mudanças e preferem manter suas rotinas”, explica o neurologista.
Além disso, muitos autistas exibem um hiperfoco em tópicos ou interesses específicos e têm uma sensibilidade acentuada a sons. Podem apresentar restrições alimentares baseadas na cor, textura, sabor ou cheiro dos alimentos.
“Nós existimos além da infância”
Foi apenas neste ano que Daniele começou a usar um cordão de identificação de autismo, que serve para informar aos outros sobre sua condição, buscando acolhimento e um atendimento adequado. No entanto, ela relata que aceitar sua condição de autista não foi um processo simples.
“Meu objetivo é mostrar para a sociedade que nós, autistas, existimos além da infância. A criança autista não deixa de ser autista ao crescer. A criança que é ajudada durante uma crise é o adulto que será hostilizado e julgado quando enfrentar uma crise similar. A criança que recebe apoio e palavras de conforto é o mesmo adulto que será abandonado e criticado por supostamente ‘fazer cena por nada’“, explica Daniele.
Ela enfatiza que o autismo não desaparece com o tempo, mas que os adultos no espectro muitas vezes aprendem a mascarar certos sinais e a adotar comportamentos socialmente aceitáveis para se adaptarem. “Ainda assim, continuamos nos sentindo excluídos. No meu caso, que fui diagnosticada apenas tardiamente, não tive acesso a terapias ou aprendizado comportamental. Isso resultou em uma série de inadequações, falta de filtro e sinceridade excessiva. Com o passar dos anos, isso desencadeou depressão e, mais recentemente, ansiedade, comorbidades comuns para quem está no espectro“, ela relata.
Para Daniele, usar o cordão de autismo não é um ato de exibicionismo, mas sim uma medida consciente e educativa. Descobrir-se autista aos 38 anos, após décadas de sofrimento e inadequações sociais, transformou sua perspectiva. “Usar o cordão é minha maneira de conscientizar a população sobre a importância da empatia para com todas as pessoas, especialmente porque muitas deficiências são invisíveis. É um ato de liberdade, que me permite ser quem eu sou sem medo de julgamentos“, conclui.
Como ajudar?
A psicóloga Natalie Brito Araripe oferece orientações sobre como amigos, familiares e parceiros podem prestar melhor apoio a adultos autistas em seu cotidiano. Ela enfatiza a importância de reconhecer a individualidade e as habilidades de cada pessoa autista.
“Há muitas coisas que eles fazem muito bem, portanto, aceitar é, sem sombra de dúvidas, a primeira ação que deve ser tomada“, explica Natalie.
“Outro aspecto a considerar é entender quais são as acomodações de que a pessoa autista necessita; assim, devemos perguntar qual adaptação ela precisa no trabalho, em casa, entre outros locais. Um exemplo de acomodação pode ser a necessidade de reduzir a intensidade de luzes muito fortes ou diminuir ruídos altos. Portanto, é importante estarmos sensíveis a essas dificuldades e fornecermos as acomodações necessárias“, finaliza a psicóloga.